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Cama de Jornal fechando o evento. Foto: I. Malförea |
2012 foi um ano musicalmente interessante para mim: com a Distintivo Blue, produzi e lancei o seu segundo EP, Riffs, Shuffles, Rock n' Roll, contando a já eterna Na Trilha do Blues e a nossa versão de O Álcool Me Persegue, da Cama de Jornal, enriquecendo aos poucos a vivência em estúdio. A BLUEZinada! já existia e o site da banda já havia se transformado num portal especializado em blues, que depois veio a ser o site da zine. Já tinha alguma experiência em produção de eventos, mas sempre partindo da premissa em que tudo era feito "nas coxas", porque sempre faltava apoio.
Então, à época como servidor do SESC, e trabalhando justamente no Setor Social, o que realizava todos os eventos culturais da entidade, me deparei com a possibilidade de organizar um evento dedicado ao rock, aproveitando o projeto Quinta Musical, que acontecia semana sim, semana não, na praça 9 de Novembro, pleno centro da cidade. Dia 13 de julho (uma sexta) seria o dia mundial do rock e, sabe-se lá como, consegui convencer algumas pessoas beeeem caretas de que seria boa ideia lotar a praça de gente e som menos convencional (ao menos para o mundinho quadradão deles).
O SESC Bahia, especificamente o de Conquista, é bem diferente da matriz em São Paulo, amplamente conhecida na história musical brasileira, por sua mente aberta (hoje já rendendo outra leva de críticas) e importância no rock nacional. Aqui é diferente: apesar de não ser um órgão público, parece amar a burocracia, criando dificuldades desnecessárias para tudo. E, espantosamente, não se importa realmente com cultura, e sim com a quantidade de pessoas que atrai para seus eventos. Sua moeda chama-se ATENDIMENTO e deve ser sempre superado ano após ano, o que significa que se hoje um evento conta com 1000 atendimentos (pessoas presentes, recebendo os serviços, que podem ser assistir a um show, ser atendido por uma oficina de artesanato ou medir a pressão, ou qualquer coisa do tipo), no ano que vem esse número deve ser superado.
Mas, tal qual aqueles funcionários públicos caricatos, ouvi de meu chefe à época: "se eu superar demais o número anterior, no ano seguinte terei de ter mais trabalho ainda pra superar esse número, então eu prefiro superar só um pouco". Então, o número a superar 1000 será 1050, e não 5000, ainda que perfeitamente possível. Triste, numa entidade paraestatal (que usa dinheiro público), cujo slogan escrito no muro enorme em frente à piscina era: "a maior rede privada de bem-estar social". O império do comodismo, da preguiça e da má vontade, tal qual em caricatos órgãos públicos. Nem preciso dizer que, para uma pessoa cheia de ideias como eu, ter as ferramentas (que antes eram tão sonhadas) para criar coisas boas, mas se deparar com esse muro de má vontade se tornou altamente decepcionante com o tempo.
Voltando, tratei de pensar o formato do evento, que já tinha sua estrutura pronta (palco, som, espaço, apoio, dinheiro para os músicos, etc), dando certa liberdade para criá-lo. Pensei em chamar três bandas (óbvio que a minha não poderia participar, pois eu pertencia ao corpo de funcionários do contratante) numa sequência lógica, do suave ao pesado, para não assustar os também caretas lojistas da praça. O evento começaria no início da tarde, mas a música ao seu fim e terminaria à noite, quando as lojas já estariam fechadas. Me veio, então, como primeira atração, o classic rock da Tombstone, que tinha à frente por meu colega de Distintivo Blue e The New Old Jam Camilo Oliveira, guitarrista, e Tales Dourado (vocalista, à época também com a Randômicos). Eu conhecia o som, sabia da qualidade e que não me fariam passar vergonha.
Em seguida, passei ao autoral: chamei a Ladrões de Vinil, que sempre faz dos shows espetáculos, e que trariam certamente muitos "atendimentos" para mostrar aos caretas que o rock também tem seu peso, não só os arrochas e forrós insuportáveis que eles estavam acostumados a dar dinheiro fácil. Pra fechar a noite (lembrando que as lojas já estariam fechadas e, portanto, não haveria encheção de saco dos empresários), a insuperável Cama de Jornal. Três atrações muito boas, que representavam muito bem o rock conquistense, sem assustar os velhotes do SESC (ao menos na minha cabeça).
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O banner do palco em seu conceito original |
Fui ao Corel e fiz o flyer, o banner que seria exposto no palco, chamamos as tradicionais "oficineiras", que atraíam gente para fazer bonequinhos de biscuit, mandalas, enfeites de cabelo, e coisas do tipo. Geralmente boas pessoas, complementando sua renda de forma honesta. Claro que sabia que isso não daria muito certo, mas não dava pra mudar o mundo de uma vez só. Não disse nada e deixei que as chamassem, mesmo sabendo que o público não seria como o de sempre. No banner, a clássica frase Long live Rock n' Roll, universal, escrita em inglês. Mesmo em marte, seria facilmente reconhecida por todos os que trazem o rock como filosofia de vida, não apenas gênero musical.
Mas, lembra o que eu disse sobre a dificuldade em se sair do mais do mesmo no SESC? Todo material de divulgação dos SESCs do interior devem ser enviados à unidade de Salvador, para que aprovem, o que sempre me deu a impressão clara de que os soteropolitanos consideram o interior uma selva de ignorantes semianalfabetos, incapazes de fazer qualquer coisa sem algum "adulto" fiscalizando. Claro que encrencaram com meu banner: não gostaram da frase em inglês. Por e-mail, expliquei que a frase é propositalmente em inglês porque é dita em inglês em todo o mundo, como um grito de guerra universal. Óbvio, não adiantou: traduziram a frase para português, em e-mails que demonstraram perfeitamente sua total ignorância para o rock e ainda devem ter me chamado de caatingueiro ignorante, mal sabendo eles que o interior os considera um bando de folgados arrogantes e mal-educados.
Os cachês não foram altos, mas ainda consegui que fossem consideravelmente maiores que o normal para cada banda nesse projeto, o que foi uma grande vitória para mim, que sempre lutei por cachês dignos nesta cidade (me rendendo uma boa coleção de antipatizantes, que aproveito para mandar ÀQUELE lugar). O flyer foi impresso e distribuído pelas redes sociais, sem nenhum problema. Eu estava muito animado por contribuir com a cena tendo uma boa e rara estrutura comigo. Enfim veria algo diferente promovido pelo SESC Conquista: "de graça, na praça", sem baixaria, sem bunda, sem letra pornográfica, com o devido peso, cuidado, trabalho e mensagens construtivas. Afinal, esse não era o real propósito do SESC? Alguém precisava lembrar os falsos moralistas caretas daqui que cultura não é só número. Curiosamente, a pornomusic era sempre promovida por velhos burocratas evangélicos moralistas. A baixaria valia, desde que trouxesse atendimentos e não se comentasse sobre o assunto. Ainda não acredito que consegui ficar dois anos naquele lugar.
Chegou o dia: a Tombstone fez um belíssimo show, conforme o previsto. Meu chefe parecia estar gostando. As oficineiras estavam trabalhando bastante também. Como o som deles era essencialmente feito por covers em inglês, não houve nada de assustador aos meus colegas. Logo em seguida, os Ladrões de Vinil, com seu show essencialmente enérgico e divertido. Um rockabilly conquistense de primeira. Não tem como não gostar de um show desses. A praça foi enchendo, as lojas foram fechando, a noite foi caindo. Estávamos lá desde as 13h, mas os shows começaram bem mais tarde, propositalmente, porque já tínhamos recebido reclamações dos lojistas em outros eventos: gostavam do movimento que trazíamos, mas não queriam barulho. Aprendi muito sobre descaso, oportunismo e falta de educação para a cultura no Brasil nessa época.
Quando a Cama de Jornal subiu ao palco, já era noite. Nenhuma loja aberta, mas a praça lotada. O show dos caras é essencialmente autoral, e o público canta todas as músicas junto. O vocalista, Nem, é uma figura única: passa sua mensagem, e ainda faz rir com seu jeitão. As oficineiras caíram fora, por causa do horário. A praça ficou do jeito que deveria ser desde sempre: a música, os músicos e o público à vontade. O volume subiu, o show aconteceu e o objetivo estava cumprido: nunca o projeto Quinta Musical havia conseguido tantos "atendimentos" antes. O rock não errou! E calou a boca dos burocratas caretas e acomodados do SESC Conquista, que, por sinal, estão lá até hoje, torrando o dinheiro público com bandas de baixaria todo fim de semana, à beira da piscina.
EPÍLOGO: apesar do grande sucesso com recorde de atendimentos, e eu estar explodindo de orgulho da minha tribo, o resultado não foi positivo: os lojistas reclamaram do barulho, meu chefe achou o público e as bandas "agressivos demais" (embora não tenha acontecido uma só confusão durante todo o evento, como é de praxe em shows de rock. Ele simplesmente não foi capaz de entender o que é uma roda punk ou um vocalista dizendo coisas diferentes de "mão na bundinha", ou "desce até o chão"). Eu achei que tinha conseguido abrir os olhos da entidade para o fato de a cultura ser ampla, e não compreender apenas música para rebolar e simular relações sexuais: a única exceção à essa regra no SESC Conquista era o projeto Sonora Brasil, que é nacional e faz músicos de todo o país circularem nas unidades SESC, sendo obrigatório recebê-lo. Os músicos de voz-e-violão até tinham algum espaço, mas a burocracia cresceu a ponto de espantar todos os músicos e desconsiderar o SESC como uma possibilidade (isso eu sei que está acontecendo em todo o Brasil). Mas, meu(minha) amigo(a): se o receptor não quer ouvir, não adianta o malabarismo que o emissor tenha de fazer.
Esse foi, possivelmente, o início da decepção que me fez acabar com a Distintivo Blue no fim desse mesmo ano, ao ver, no Natal da Cidade, bandas cover, mas com influência política, tomarem o lugar de bandas autorais, cuspindo nas próprias especificações do edital e na cultura regional como um todo. Um ano depois, na Casa do Rock (de Nem, da Cama de Jornal), a DB voltou à ativa e tivemos um período de altíssima produtividade até o final de 2016, num cenário ainda mais sufocante para a música autoral conquistense. Aprendi muito sobre como a cultura é encarada pelo poder público, pela iniciativa privada, por entidades paraestatais voltadas à cultura, pelo público e pelos próprios músicos. É preciso sim ser uma muralha de aço para continuar tentando. Quem tiver alguma força, por favor, use-a!
Clique na imagem abaixo para acessar todas as fotos:
Vídeo: Apresentação da Cama de Jornal
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