| "Tipo exportação" é a mais perfeita definição deste disco baiano |
A peculiar capa do disco, feita de juta, com letreiro em relevo
Falar deste disco é especial para mim: nos primórdios de minha carreira como músico existia uma banda de blues bastante conhecida, que eu ainda não tinha visto ao vivo, chamada MPBlues. Tocavam os standards do estilo, como qualquer banda no mundo, mas também faziam versões bluesy de músicas brasileiras. Chegaram até a gravar Tigresa e fazer um clipe. Tinham forte influência da Blues Etílicos (RJ) na sonoridade e na atitude. Eram tempos onde a internet era bastante precária e ainda recebíamos flashs animados por e-mail.
Na primeira vez em que os vi ao vivo, tocamos num evento público que acontecia todo ano aqui na cidade, o palco do rock na micareta. Eu, à frente da banda Tomarock, que tocava basicamente covers de rocks setentistas, como Led Zeppelin, Deep Purple e Steppenwolf, abri o evento. A MPBlues, tão falada por todos, fecharia o evento. Seria minha chance de vê-la. E assim foi: a primeira banda de blues que vi ao vivo na vida. Nessa ocasião, o gaitista Diro Oliveira chamou ao palco, para uma participação especial, o guitarrista Rômulo Fonseca. Antes, falou: "Rômulo está com uma banda para tocar rock n' roll e precisa de um vocalista. Se houver algum aí, entre em contato."
Resumindo, em pouco tempo eu era o vocalista da tal banda, estava ensaiando na casa desse gaitista e dividindo o palco com ele. A minha nova banda, The New Old Jam, passou a ser uma espécie de "irmã mais nova" da MPBlues. Onde uma tocava, sempre tinham participações especiais de membros da outra. Ambas fazendo covers. Eu era um garoto completamente verde e esses caras me mostraram o maravilhoso mundo dos palcos. O tempo passou, a MPBlues se tornou Café com Blues, e metade da The New Old Jam fundou a Distintivo Blue.
A Café com Blues já veio com uma proposta totalmente nova: músicas autorais, falando do cotidiano da zona rural da nossa região, o sudoeste da Bahia, que é riquíssima culturalmente. Não é à toa que o mestre Elomar se tornou uma lenda da world music, cantando este mesmo sertão. A formação da banda era praticamente a mesma da MPBlues e o cuidado que tinham com a proposta me inspirou bastante também. O trabalho era sério e conceitual.
Em 2008 o CD foi lançado, com um belíssimo trabalho gráfico: ao invés da tradicional e frágil capinha de acrílico, temos aqui um livreto, com capa bastante resistente, forrada com juta, aquele material usado para as sacas de café. Muito bonito e perfeito para a proposta. "Os Diros", como dizia uma amiga, também são ases na arte serigráfica, e imprimiram o logotipo da banda em relevo, com tinta emborrachada. A prova de que o trabalho foi muito bem feito é que meu CD ainda está praticamente novo, aqui em 2016.
No interior, um encarte de 32 páginas em papel reciclado, contendo as letras das músicas, reproduções de obras de artistas plásticos da região e textos de personalidades da cidade e amigos, como professores, jornalistas e pesquisadores. Após a última página está o disco, cujo espelho simula um disco de vinil. Realmente, só aí já temos um produto "tipo exportação".
Agora vamos às músicas: O disco abre com Blues na Caatingueira, autoria do baterista Thomaz Oliveira, que também era baterista da The New Old Jam, e autor de músicas que você conhece através da Distintivo Blue, como Na Trilha do Blues e De Cara no Blues. Esta é o que chamaríamos de música de trabalho do disco: ganhou videoclipe e foi bastante difundida, de acordo com as possibilidades. Confira aqui o clipe:
Lei Áurea, trata do fim da escravidão dos negros no Brasil e o problema que gerou ao "despejar" milhares de pessoas sem estrutura na sociedade do comércio. O fim da lei não significava uma vida digna, e assim nasceram as periferias do Brasil e sua gente marginalizada e esquecida pelo Estado. De Repente um Blues é uma ode aos repentistas sertanejos, verdadeiros mestres do improviso, tal qual os bluesmen e jazzistas do norte do continente. A ideia do paralelo entre o sul dos EUA e o nordeste do Brasil, aliás, está presente em todo o disco.
Cultura abraça e comemora a identidade brasileira e a liberdade de expressão, negando a ideia de que o sertanejo deve ter vergonha de sua realidade: deve sim ter orgulho! Um Sertão Belo conta o drama do caatingueiro que luta contra a seca para sobreviver, remetendo a Luiz Gonzaga. A esperança é, muitas vezes, o que mantém esse povo firme. A religiosidade típica dessas regiões também se mostra importante nesse quesito. Mudando de ângulo, Jornal da Manhã, de Paulo Macedo, músico e compositor consagrado e conhecido na região, já nos transporta ao ambiente urbano e as eternas más notícias que nos acostumamos a receber.
Navio Negreiro volta aos tempos do Brasil colônia, com a viagem sem volta dos negros vendidos como escravos pelos próprios africanos aos europeus (vale lembrar que a África sempre foi lar de centenas de etnias diferentes, onde não existia o conceito moderno de "união negra": qualquer estrangeiro – leia-se "não pertencente à aldeia" – poderia ser feito escravo e vendido, e assim se deu). Do outro lado do oceano, no Brasil e nos EUA, a escravidão gerou gritos e canções de desabafo e tristeza, que se tornaram o blues e as diversas manifestações musicais ancestrais brasileiras, como o samba, por exemplo.
Umbluseiro no Sertão é uma declaração de amor a uma árvore típica da região: o umbuseiro. O umbu é abundante e perfeitamente integrado à culinária local. Nesta faixa temos a participação de mais artistas regionais, como Manno di Sousa, Walter Lajes e o grande Xangai, recitando trecho folclórico. Noel, do guitarrista Julio Caldas, é a única canção que foge da temática geral do disco, mas prepara o ouvinte para a faixa final, que celebra uma manifestação cultural típica da zona rural do sudoeste da Bahia, intimamente ligada à religiosidade, passada de geração a geração desde tempos remotos: o reisado. Para isso, participam da faixa, grupos de reis e mais artistas locais. Tudo isso ao som de pifes e gaita, zabumba e guitarras. Este é o Brasil.
Temos aqui um grande disco de música verdadeiramente brasileira. Claro, há aqueles que se queixam que não é blues, mas temos de ouvi-lo com a mente aberta: assim como existe Chuck Berry e o Sepultura no rock, existe Muddy Waters e Café com Blues no blues. Como sempre defendemos ao explicar nosso próprio trabalho, já existem centenas de músicos excelentes tocando o blues tradicional no Brasil. Por que precisamos de mais um "woke up this morning"?
Os puristas que me desculpem, mas não há razão para o blues, pai de estilos tão dinâmicos como o rock, o jazz, a soul music, se enterrar APENAS no tradicional. Claro, ele é necessário e deve ser protegido, mas há como o clássico conviver perfeitamente harmônico com o moderno. A música, felizmente, não é física, portanto, dois ou mais corpos ocupam o mesmo espaço. Em sua musicoteca pode sim haver vários estilos diferentes de blues. Aqui temos um legítimo disco de BRBlues, o blues autoral brasileiro, com características próprias, não se limitando a simplesmente copiar o blues americano, fazendo versões desajeitadas em português ou num inglês cheio de sotaque.
Falar do blues, sobretudo nacional, é o papel da BLUEZinada!, portanto seria impossível não falar da Café com Blues. Atualmente a banda está praticamente desativada, com apresentações cada vez mais raras. A formação já mudou consideravelmente desde o primeiro disco, mas já há várias canções novas para um segundo, já prometido, inclusive com a participação do ator Jackson Costa recitando poemas, aproximando o grupo cada vez mais da música regional e se distanciando do blues.
Se, quando do lançamento do disco, a banda possuía um website bastante interessante, agora é tarefa difícil encontrar material em boas condições na internet. Esta foi minha grande dificuldade ao tentar abordar a banda no site. Então, tive a ideia de entrar em contato com o próprio Diro e pedir autorização para postar o disco de forma profissional nas principais plataformas de streaming. Com muita alegria, recebi um "sim" como resposta e, finalmente, aqui está o disco da Café com Blues eternizado na web. Como historiador de formação, músico do BRBlues e amigo da banda, fico muito satisfeito de ter recebido esse "poder" de levar adiante esse trabalho tão caprichado e sincero.
Os fonogramas vieram do meu próprio CD e a foto da capa é a foto do meu disco. Felizmente todas as músicas já tinham seus ISRC, o que facilitou bastante: se eu tivesse de gerar esses códigos, eu seria inevitavelmente creditado como produtor, e não é essa a minha intenção. Disponibilizei o disco apenas em plataformas onde você não precise pagar por ele. Mesmo na ONErpm, a minha distribuidora, que possui uma loja virtual para downloads, o disco é gratuito. Não sei se a banda retornará suas atividades um dia, com direito a site atualizado, perfis ativos nas redes sociais, etc, mas me certificarei de que não seja esquecida e continue disponível online enquanto isso não acontecer. Senhoras e senhores, com prazer, apresento-lhes a banda Café com Blues!
Diro Oliveira - vocal, flautas e gaitas
Júlio Caldas - vocal, guitarras e violas
Thomaz Oliveira - vocal bateria
Lúcio Ferraz - guitarras e violões
Luciano PP - baixo
Horton Macedo - sax e flautas
Banda de apoio:
Paulinho do Trombone - trombone
Daniel Novaes - trompete
Bazé - percussões
Participações:
Tança da Gameleira
Xangai
João Omar
Otavio Castro
Bule-Bule
Antônio Queiroz
Seu Raimundo Ribeiro
Sinval Andrade
Grupo Os Três Reis Magos
Cláudia Rizo
Manno di Sousa
Walter Lajes
Dahora
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Publicado originalmente em 2016, na BLUEZinada!
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