And that has made all the difference”
Robert Frost, The Road Not Taken
Se estivesse vivo, neste domingo, 27 de março, o cantor e compositor Renato Manfredini Jr., o Renato Russo, completaria 62 anos de idade. Morto em 1996, em consequência da AIDS, a história de Renato nos ajuda a compreender um tanto da história do punk e do pós-punk nacional, desde os tempos em que liderou a banda Aborto Elétrico, em fins dos anos 1970, até a formação e o sucesso da Legião Urbana nas décadas seguintes.
Com a Legião, é possível perceber o olhar político e afiado da própria história do Renato e também um retrato da história do pop-rock do país. Tenho inúmeras lembranças do tempo em que a banda estava na ativa. Algumas afetivas e umas risíveis e próprias do fazer trágico adolescente. E uma delas é que mesmo sem mim (!) o show da turnê “As Quatro Estações” aconteceu no dia 10 de novembro de 1990, no Clube Baiano de Tênis, em Salvador, exatamente um ano depois do lançamento do disco homônimo.
Lembro que desde 1986 a banda não lançava um álbum com músicas totalmente inéditas, uma vez que o disco “Que País é Este?”, de 1987, reunia a mescla de coisas novas com antigas produções ainda do tempo do Aborto Elétrico. O que Renato Russo irá dizer? Como será o som da Legião depois da saída do baixista Renato Rocha? Me lembro que eram estas algumas das nossas expectações naqueles dias.
Recordo também que sofri bastante quando minha mãe me proibiu de ir àquele show da Legião Urbana, em Salvador. Com 16 anos, eu ainda era filhinho grudado na barra da saia da mamãe e, portanto, eu não podia ir além do conveniente ou do oportuno. Ademais, com minha mãe, era impossível forçar a barra. Os jeitos: aguentar. Segurar a barra!
Eu mantivera tudo em segredo até às vésperas da viagem na esperança de que, em cima da hora, Dona Elza iria aceder. Nada. De modo nenhum. Absolutamente não.
Para que você compreenda, em algumas raríssimas visitas que fazíamos à casa de alguém, minha mãe jamais deixou que eu e meu irmão comêssemos ou bebêssemos alguma coisa. Sequer o banheiro podíamos usar. Lembro que antes mesmo de sairmos, ela nos advertia: “Senta aqui do meu lado. Vou ler um beabá pra vocês. Nós vamos à casa de Fulana e lá não é pra aceitar nada. Nada, ouviu? Nem água. Querem ir ao banheiro? Então, vão logo. Lá não pode”.
Ocorre que sempre nos ofereciam alguma coisa e antes que pudéssemos reagir, minha mãe atravessava com “eles não querem não” ante a nossos olhos mendigos e a cocada-de-forno, o pé-de-moleque, a umbuzada, o doce de leite com batata doce, a rica goiabada com queijo, a banana em calda, o doce de mamão verde enrolado em fatias finíssimas e feito colar em linha com agulha, a torta de requeijão, a geleia de mocotó…
Logo, nada de Salvador. “Você perdeu o quê lá?”, minha mãe indagava sisuda. E nada de Legião Urbana. “Uns doidos com roupas esquisitas e músicas mais esquisitas ainda. Não, não e não. Você não vai, não. Não botei filho no mundo pra ser maloqueiro. E além dos mais você não é banana, pra andar empencado”.
Detalhe é que uma das canções principais de “As Quatro Estações” diz que disciplina é liberdade. E pensando na música “Há Tempos”, minha decepção foi tamanha que minha voz poderia acordar a vizinhança inteira, se gritasse.
Até aquela época (1989), entretanto, eu conhecia pouco a Legião Urbana. Mas os meus amigos José Ronaldo, o nosso Jhonny, e os irmãos Binha, Bite e Tiço Marques cantavam de cor todas as canções da banda, desde “Será” até “Mais do Mesmo”. O que quer dizer que eles sabiam desde a primeira música do Lado A do primeiro disco (Legião Urbana, de 1984) até a última canção do Lado B do último elepê (Que País É Este?, de 1987).
E conhecia pouco porque, como a maioria dos jovens de Vitória da Conquista daquele tempo, o meu repertório era formado pela programação das rádios Clube AM e Regional AM. Não tínhamos vitrola em casa e muito menos o hábito (e o dinheiro, evidentemente) de comprar discos. Demais, o rádio FM em Conquista era muito recente e em minha casa, por exemplo, meus pais sequer tinham um aparelho para FM.
Eles não se sentiam atraídos por uma setlist recheada de músicas que não compreendiam. Aquele rock’n roll nacional e os ditos balanços internacionais lhes eram insuportáveis. Além disto, a letras de Renato Russo abordavam questões (metafísicas, digamos) alheias à história de vida de meus pais. Minha mãe preferia, sem dúvida, o Jerry Adriani; cujo timbre de voz é semelhante ao de Renato, mas o repertório romântico estaria mais próximo dela.
Mas, para além daquele desapontamento, tenho memória fotográfica do dia em que os locutores Zenon Barbosa e Marcelo Carvalho, o nosso Marcelo Bonfá, executaram pela primeira vez na Rádio Bandeirantes FM a música “Há Tempos”. Era tarde de um sábado de outubro de 1989, provavelmente o dia será 21, Zenon Barbosa, então locutor e programador da emissora, sabedor da admiração do Bonfá, decidiu por fazer-lhe uma gentileza: Marcelo seria o primeiro da rádio a tocar aquela música.
Mas, por algum motivo que não recordo qual, Marcelo só estaria na emissora no sábado à tarde daquela semana e somente a partir das 15h00. Não me vem a memória aquele porquê, porém a expectação ainda é muito vívida. Sei exatamente o que Marcelo disse e sei que quase o pedi para tocar “Há Tempos” de novo, logo ali na sequência. A música fora escolhida como primeiro single do álbum “As Quatro Estações”, lançado na segunda-feira dia 30 de outubro de 1989 e, segundo o Jornal do Brasil, o disco já chegava às lojas com 450 mil cópias vendidas antecipadamente.
Em um tempo em que não havia internet, Renato Russo era uma espécie de irmão mais velho da gente apontando caminhos, livros e discos. Ele nos falava de bandas que jamais ouvíramos como: Bauhaus, PiL, Buzzcocks ou Joy Division. Renato também abordava autores que a gente não sabia que existiam, como Robert Frost, W. B. Yeats ou John Keats, e mesmo os que a gente conhecia, como Shakespeare ou Nuno Fernandes Torneol, o cantor falava de um jeito que a gente não via na sala de aula.
Me lembro de, junto com meus amigos, cantarmos “Parabéns Pra Você” no dia do aniversário dele. Mas, se antes, na adolescência, cantávamos os parabéns, neste domingo, vou sugerir aos meus amigos (e aos leitores) ouvirem “A Canção do Senhor da Guerra”, como repúdio diante da situação na Ucrânia e das circunstâncias que ameaçam a paz no mundo em “mais uma guerra sem razão”.
Ter bondade, afinal, é ter coragem e a compaixão é fortaleza. Coragem e compaixão para preservar o mundo da loucura da guerra. “Mas tem sempre algo mais”. E como houvesse a recomendação em todos os discos da Legião, vou ainda propor: ouça no volume máximo. E lembrem-se de que: “O senhor da guerra / Não gosta de crianças”…
Salve, Renato!
Muita coisa mudou, entretanto mais de uma de suas canções continuam atualíssimas.
— Para os locutores Zenon Barbosa e Marcelo Bonfá, dois profissionais que influenciaram muitíssimo os meus fazeres. Cada um, de modo bem próprio, me ensinou que responsabilidade efetiva é o preço a pagar pelo direito de fazermos as nossas próprias escolhas e que responsabilidade afetiva é quando você se responsabiliza pelo sentimento e pelas expectativas que cria nos outros, porém, ao mesmo tempo percebe que há quem esteja do “mesmo lado que você, mas deveria estar do lado de lá” (como na canção de Flavio Venturini com Renato Russo).
— Para os meus Amigos da Aracaju-70... sem os quais eu nada seria. Com eles eu tomei a estrada menos provável, e isso fez toda a diferença (tal como nos versos de Frost em epígrafe).
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Publicado originalmente em 27/03/2022, em Conquista de Fato.
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