Detalhe da capa do LP “Na Quadrada das Águas Perdidas”, de 1979 |
Mafuá de Malungo - Contos, crônicas e memórias de Elton Becker.
Esta semana passada marcou o aniversário do cantor e compositor Elomar Figueira Mello: 84 anos a 21 de dezembro. Elomar tantas vezes chamado de Elomar Figueira de Mello, para seu próprio desgosto. Esse equívoco é graças ao músico Carlos Alberto Freitas de Lacerda, conhecido como o “Governador do Teclado”.
Lacerda era pianista, maestro, compositor e arranjador e foi ele quem escreveu a nota da contracapa do primeiro LP de Elomar, “…Das Barrancas do Rio Gavião”. E, por um pequeno descuido, o renomado pianista cometeu aquele lapso. Todavia mais vale perdoar que castigar, logo é bom nunca esquecer que foi Lacerda quem apresentou Elomar a Roberto Sant’Ana, responsável pela produção e direção daquele disco.
Assim, um dos nossos intentos era fazer uma homenagem a Elomar. Porém a vida, como diz Riobaldo, é muito discordada e eu quisera fazer uma entrevista que nunca aconteceu.
Como disse, dezembro é aniversário de Elomar e dezembro marca também as gravações do seu segundo disco: “Na Quadrada das Águas Perdidas”, em 1978, o lançamento ocorre ano seguinte. E eu pretendera gravar uma conversa com o pintor Orlando Celino, autor do óleo que adorna a capa daquele álbum.
No dia e horário marcados, lá estava eu “enfreado à porta” da casa dele onde conversamos por quase duas horas. Conversa de rir a mais não poder. E falamos coisas sérias também, de Adilson Santos, de quem Orlando fez um retrato pequeno, porém imenso nos detalhes; de Oscar Niemeyer, de quem Celino ganhou um desenho em 2007; falamos de uma serigrafia de E. di Cavalcanti, que o pintor tem na sala de casa.
Arte até que achei no meu projeto, entretanto Orlando tem mil e não sei quantas “badaronhas”, artifícios e aprontações demais. Assim, com equipamento já pronto e várias notas tomadas em um moleskine, tomei chá-de-coragem, “arriscosa função”, e arrisquei: posso gravar já?
Como era de esperar, Orlando tergiversa e acaba escusando-se com razão de não conceder a entrevista e de não ser a hora boa. Mas como eu já previra que teria de “mili légua caminhá/ muito mais, inda mais, muito mais / da Vaca Seca, Sete Varge inda pra lá / muito mais, inda mais, muito mais”, e, feito Riobaldo, eu visli a sorrateira malícia nos jeitos dele, então, lhe mostrei um trunfo, ilusão de uma vantagem: o elepê “Na Quadrada das Águas Perdidas”!
Vejo Orlando emocionado com o álbum nas mãos. “Esse me traz ótimas recordações de um tempo feliz”, uma suspiração que lembra os versos de “Função” sobre a saudade, “essa fera”.
O tempo feliz que Orlando relembra é o final da década de 1970, quando morava em Salvador em um apartamento, ali na Carlos Gomes, pertencente ao amigo Vicente Quadros. O pintor comenta alguma coisa e, rapidamente, eu percebo que a história do quadro é também a história da amizade dele com Vicente e de como o jovem Orlando Celino brincava com a sorte.
É que a obra “Na Quadrada das Água Perdidas” Orlando pintou entre os 19-20 anos de idade. Mas, antes desse, houve um pequeno quadro de um personagem só e que se perdeu ao que parece. Esse primeiro é a representação do impacto que a música-título do álbum causou em Orlando durante uma viagem “dispois dos derradêro cantão do sertão” ao lado de Vicente.
O segundo quadro, o que está na capa do álbum, nos apresenta seis personagens: um homem em retirada com uma menina agarradinha ao pé de si, como que dissesse “num vai” e o pai retrucasse “me ispera, assunta viu / sô imbuzêro das bêra do rio / conforma num chora mulé / eu volto se assim Deus quisé”.
E à direita desse personagem em passo de travessia, um pouco mais baixo, ao rés do chão, há um garotinho arranchado com um cachorro (seria cachorra?) e, mais próximo desses dois, há uma mulher com uma criança escachada no colo.
Ao fundo, vemos o rancho de taipa, a cerquinha de gravetos estorcidos, o umbuzeiro, o leito branco e seco do Rio Gavião e, mais ao alto, o rapina dum “gavião danado” parece sobrevoar a Serra da Tromba.
Quem conhece o quadro sabe que ele é grande (1,70 por 2,20), mas talvez não saiba que foi pintado em pouco mais de 24 horas para incredulidade de Anthony Worley, o famoso fotógrafo do Selo Continental. Como bacurau, como vaqueiro internado nos serrados de jurema campiano trem alevantado, Celino trabalhou um dia todo e madrugada adentro nessa função.
Foi quase que “um truvejo c’ua zagaia só”. À hora marcada e mesmo sem acreditar, Anthony Worley riscava no terreiro com todos os apetrechos de um fotógrafo profissional: câmera, lentes diversas, tripé, refletor e fotômetro. E enquanto Worley fotografava, o pintor aproveitou para descansar um pouco do furdunço do dia anterior e aproveitar o alívio do dia seguinte.
Dormiu por uma longa hora ou duas, talvez. Worley fez tudo até por volta do meio-dia e, quando ele saiu, Orlando voltou a dormir. E tanto quanto esse sono de chumbo me permite, recordo o exercício de tradução de L’aprés-midi d’un faune, de Mallarmé, feito por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos: “A tarde de verão de um fauno / A tarde de um fauno / A sesta de um fauno”.
— Mas entrevista comigo que é bom, nonada! Contudo “tribusana” com Orlando, confusão? Não ia querer. O que eu sei dessa história é por ouvi-lo dizer, faz tempo. E esse é um pouco do enredo da entrevista que nunca aconteceu e de algum modo é meu respeito a Orlando Celino, porque (tal como Elomar) ele é avesso a entrevistas.
Não gosta mesmo de muitas aparições públicas, de participar de exposições e, menos ainda, de vernissages. Tal como aquele personagem Antônio Martins, um crítico de arte de Sérgio Sant’Anna, em “Um Crime Delicado”, Celino parece detestar todas aquelas misturas doces e pegajosas que são servidas em vernissages, lançamentos de livros e outras mumunhas mais.
Tal como Cândido Portinari, ele acredita que o que o artista quer dizer está em suas telas. Mário Gruber diz que Portinari era um homem fascinante, com extremos de generosidade e irascibilidade; eu digo que, além de fascinante, a companhia de Orlando é-me muito agradável pelas prontas e espirituosas respostas que ele tem.
Mas só quando ele permite. Às vezes, sai chispando em luzes feito um cometa riscando o céu sombrio, como no poema de Olavo Bilac, fugindo lá para onde um lúcido menino amolecado propõe uma nova infância, como no poema de José Paulo Paes – ali repousa o pintor, num campo etéreo.
Ali onde a taça de néctar, o vinho dos deuses, é oferecida. Onde Baco é quem serve, Vulcano cuida da cozinha, as Horas enfeitam tudo de rosas e flores, as Graças esparzem perfumes os mais deliciosos, as Musas cantam em vozes maviosas, enquanto Apolo solta a voz emoldurada por uma cítara e Vênus dança graciosamente.
Segundo Apuleio, foi nessa ocasião que Psiquê se tornou esposa de Eros e dessa união nascerá uma filha, Volúpia, o grande prazer dos sentidos. A primeira vez que vi Orlando ele falava da volúpia dos pintores quando apaixonados.
Recordo ainda que o Sátiro grego é o Fauno romano e é ele quem sopra o pífano e Pã, a flauta, naquele casamento. Fauno é uma divindade querida de Orlando. Divindade transmutada para o Planalto da Conquista no sertão. É também o nome do refúgio do pintor em Rio de Contas, batizado de Casa do Fauno.
E assim pensando essa doideira toda, saio da casa de Orlando “nos termos da Virgem Imaculada”, no tempo em que uma chuvinha começa a cair na Praça da Bandeira, “que vela a tumba dos heróis”.
Cantarolo a melodia de “Canto de Guerreiro Mongoió” enquanto penso: só me resta contar a história dessa entrevista que não houve. Todavia outra coisa me ocorre: no sertão, Deus é urgente sem pressa, o jeito é continuar à espera das achegas que ainda podem vir de Orlando.
Quem sabe se “no pispei de tudo / na quadra perdida / na manhã da estrada” eu possa também (um dia) “começar tudo de novo”?
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