Por Vitor Nuzzi - RBA
São Paulo – Elomar Figueira Mello, baiano de Vitória da Conquista, 77 anos (completará 78 em dezembro), casado com Aldamária, três filhos (Rosa Duprado, João Ernesto e João Omar), 16 discos. Pouco mais se sabe desse artista que raras vezes sai de seu refúgio para tocar. Ontem (18) foi uma dessas ocasiões – haverá mais duas apresentações, uma extra, neste domingo, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, que Elomar chamou de “capital do estado do sertão”. O compositor rompe a aura de mistério que o cerca com humor e o jeito simples de caboclo. Um caboclo erudito, exigente na interpretação. “Meus acordes são complicadíssimos”, diz, ao querer “pular” uma música que não tocava desde “sei lá”. A plateia não deixou.
As apresentações deste fim de semana fazem parte da Ocupação Elomar, aberta ontem no Itaú Cultural, na Avenida Paulista. Ali estão ilustrações, vídeos, livros, gravuras, cartas, documentos, raridades de seu trabalho musical, inclusive em fitas cassete, canções disponíveis para audição e até tiras de Henfil – que criou um de seus personagens, o Bode Francisco Orelana, inspirado no músico, criador desses animais. A exposição busca recriar a fazenda onde o artista mora, no sertão da Bahia. Fotos, só de bodes e da natureza. Elomar, além de não dar entrevista, não permite ser fotografado. E conseguiu um fenômeno para os dias atuais: durante a apresentação, ninguém arriscou fotografá-lo ou filmá-lo. Antes do show, a organização já havia feito esse apelo, falando da necessidade de cumprir um acordo feito “no fio do bigode” com o artista. Segundo Elomar, o que vale, para um artista, é a obra.
A apresentação nem sequer foi gravada pela casa, ao contrário do que costuma ocorrer. A única gravação foi para os arquivos da Fundação Casa dos Carneiros, referência à fazenda onde mora Elomar, no povoado da Gameleira, distrito de Iguá, a 20 quilômetros de Vitória da Conquista. A fundação foi criada em 2007 para preservar e divulgar a obra literária e musical de Elomar e outras manifestações artísticas. Chamada de “Conquista” pelos baianos, a cidade é a terceira maior da Bahia, fica a aproximadamente a 500 quilômetros de Salvador e é conhecida pelo clima frio. Durante o show, Elomar fez referência à neblina frequente no local, que chega a impedir o pouso e partida de aviões durante vários dias.
Sem fotos
Para a ocupação inaugurada ontem, sugeriram que ele posasse para uma fotografia. Ele sugeriu, então, que se usasse um poema, chamado Meu Retrato (leia no final do texto). Para “compensar” a ausência de fotografias, a exposição traz várias imagens feitas pelo artista Juraci Dórea, baiano de Feira de Santana e amigo de Elomar, para quem já trabalhou em alguns discos do compositor. O evento, que começou na lua nova, vai até 23 de agosto, na lua crescente.
À guisa de imagem, poderia se usar, talvez, O Violeiro, uma de suas canções mais conhecidas, lançado em seu primeiro compacto, gravado em 1968, e incluída no disco Das Barrancas do Rio Gavião, de 1972. E que não foi cantada na apresentação de ontem à noite.
“Minha música é fora de moda, cafona”, diz o cantor durante o show. “Não consegui me modernizar. Com 16 anos, eu já tinha 100”, afirma, arrancando risadas, o que se repetirá várias vezes. Ele conta que pediu à produção que providenciasse partituras de tamanho maior, porque esquecera seu “espiante”, referindo-se aos óculos.
Autodidata
Filho de um tangedor de gado (Ernesto) e de uma costureira (Eurides), Elomar fez Arquitetura na Universidade Federal da Bahia. Ali também participou, durante alguns meses, de seminários livres de música. Mas sua formação musical é autodidata.
Elomar divide o palco com um dos filhos, o maestro João Omar, e com o “cavaleiro” Heraldo do Monte, violonista de longa data, integrante do célebre Quarteto Novo, de curta duração, nos anos 1960: Heraldo, Theo de Barros, Airto Moreira e Hermeto Pascoal, que entrou por último (até então, o grupo era o Trio Novo). Participam ainda o violeiro Chico Saraiva e violoncelista Gabriela, ainda estudante de música, como Elomar diz ao apresentá-la.
Em 1982, Elomar e Heraldo participaram do disco ConSertão, ao lado de Arthur Moreira Lima e do “saudosíssimo” Paulo Moura, conforme lembra o compositor. Três anos antes, o pianista Arthur Moreira Lima assinaria com Elomar o disco Parcelada Malunga, gravado ao vivo, com participações de Heraldo, Xangai e José Gomes. Outra obra conhecida, e cultuada, é o LP Cantoria, que ganharia três álbuns, com as presenças de Elomar, Xangai, Geraldo Azevedo e Vital Farias. O primeiro disco é de 1984. O guia da ocupação lembra que, naquele ano, Elomar “passou a trabalhar sua obra erudita e adentrar no universo das óperas, dos concertos, das antífonas e da escrita orquestral”. O próprio Elomar projetou um teatro (Domus Operae) dedicado à montagem de óperas brasileiras, como o seu Auto da Catingueira.
Na música, ele diz se considerar, acima de tudo, um compositor. “Deus me fez poeta, não cantor”, diz ao público. “Alguns dizem que eu tenho voz bonita, mas eu nunca ouvi”, acrescenta, enquanto derrama sua melodia e brinca com as afinações e desafinações dos instrumentos. “Deixa eu dar uma passada”, diz a certa altura João Omar, tomando o violão das mãos do pai. Este começa a dedilhar o violão do filho, e faz graça. “Parece uma orquestra… Foi comprar lá na Espanha. Um dia vou comprar um deste.” Rápido, João pega seu instrumento de volta, para “protesto” do pai. “Tava gostando…”, diz, já rindo.
No início do show, ele entra apenas depois que João Omar toca os primeiros acordes. Mas sua voz já é ouvida da coxia. E vem Elomar no escuro, na penumbra, de capa e chapéu. A capa ele tira, o chapéu fica. No final, também sairá na escuridão, cantando. Com os diversos elementos que compõem a sua obra, o artista narra o seu universo, a vida de sua terra, o amor, a vida e a morte, a religiosidade, o misticismo. Com seu violão e sua voz, transporta o público para a terra dos Carneiros.
Meu Retrato
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