Estou entrando em estúdio para gravar meu quinto disco. Hoje isso não me soa mais estranho como antes, mas ainda me desperta aquele friozinho na barriga, aquela ansiedade gostosa. Sempre que começo um processo como este procuro ter a consciência de que estarei diferente quando terminar, afinal de contas é lá que vamos fabricar a famosa “ponta do iceberg” do músico: a vitrine, o cartão de visitas, o fonograma.
O estúdio geralmente é um lugar escuro e com um leve cheiro de mofo. A maioria é empoeirada e não é limpa regularmente, um terror para os que, assim como eu, nasceram condenados a ter problemas respiratórios. Estou falando dos estúdios pequenos e acessíveis a nós, reles mortais. Imagino que os grandes possuam uma equipe de limpeza pronta a tornar mais agradável este ambiente mágico.
Entrar num estúdio pela primeira vez (já faz bastante tempo) pra mim foi como conhecer a Disneylândia para boa parte de outras “crianças”. Era dali (ou de um lugar como aquele) que saiam as músicas que sempre me fizeram a cabeça. O cotidiano desse lugar me parecia espetacular. Aquelas caixas preto e branco tinham um som bem melhor que as da minha casa. Seria ali que minhas ideias tomariam a forma definitiva, a forma de um produto.
O processo é demorado, trabalhoso e, não raro, entediante para quem só assiste. Mas eu adoro aquilo. Decidir o beat da música, gravar a guia (uma espécie de rascunho sonoro dentro do tempo do metrônomo, onde será gravada toda a música por cima), passar para a bateria, depois o baixo e assim por diante. Teoricamente minha parte (vocal) seria uma das últimas, junto com os metais (sax, trompete e trombone), mas eu acompanho tudo e dou pitaco em tudo, afinal, é meu nome em jogo, minhas ideias que estão sendo montadas, juntamente com as dos meus colegas. Não dá pra simplesmente ficar inerte e esperar sua vez “oficial”.
Terminado todo o longo processo, estamos com os fonogramas no pendrive ou alguma outra mídia de armazenamento. Há um outro trabalho, técnico e burocrático, que inclui o cadastro das músicas para se obter o ISRC (aquele monte de números que acompanham os nomes das faixas nos encartes dos CDs. São como o RG de cada faixa e teoricamente servem para que o ECAD nos repasse a grana por execuções Brasil afora. Teoricamente), produção de capa, essas coisas. Tudo bem chato pra muita gente também.
O fonograma é, de certa forma, maior que o músico, que o autor. Ele chega a lugares que eu nunca chegarei. E vai continuar por aí, mesmo depois que eu bata as botas. Quando alguém quiser lembrar de como era a minha voz é só ouvir uma das minhas músicas. Minha visão de mundo está nas letras. Como disse Raul, “os homens passam, as músicas ficam”. É uma forma de ser eterno.
O tempo passa e eu tenho um pacote de lembranças totalmente diferente de todo mundo quando ouço uma música minha. Posso me lembrar do processo de composição e das horas dentro de um estúdio, saindo de lá meio tonto depois de horas trabalhando. Mas vale a pena. Lembrei do Gilmour dizendo que gostaria muito de ter a sensação de ir a uma loja, comprar e ouvir o Dark Side of the Moon pela primeira vez, sem essas lembranças, apenas como um simples fã que ouve sem saber o que vem pela frente e vai se surpreendendo. Taí… Entendo perfeitamente. Mas eu gostaria de estar no estúdio com eles, com certeza.
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Publicado originalmente em 16/04/2015, em Troca o Disco.
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