Temos dificuldade em falar sobre a produção musical do Chile, do Peru, do Paraguai, da Bolívia, do Uruguai, da Venezuela e demais países da América do Sul, Central; demais países dos demais continentes que não sejam o europeu (também não citamos o Leste europeu) e a Região Norte da América, especificamente dos Estados Unidos.
Temos dificuldade em abordar sobre qualquer outra expressão artística que o tal mercado cultural excluiu e ainda exclui dos nossos processos de percepção, de absorção, de apropriação, de fruição.
A arte veiculada pelos meios de comunicação figura o que o mercado quer que se consuma. Entendendo o consumo como a mola mestra do mercado. E esse consumo segue a lógica de produção rápida e em larga escala, de curta duração e útil.
Com o devido cuidado de citar a palavra útil como o que só serve a uma determinada forma de entretenimento também rápido, curto, pequeno, ao mesmo tempo, intenso, de volume bem alto, pra tocar nas festas, nas rádios comerciais, nas playlists das lojas, dos shoppings...
Longe de apontar sobre os valores, sobre a estética ou questionar o processo de criação das obras que nos foram e estão sendo "presenteadas" pelo mercado de consumo, esse pequeno texto tenta abordar a respeito da atenção que nos foi desviada das demais expressões musicais de outros lugares, de outros povos, inclusive dos povos daqui do nosso País.
Se trata de supressão da possibilidade de acessarmos às diversidades, as manifestações que não estão nas prateleiras do tal mercado, por entendermos a partir desse processo de manutenção do consumismo, que música mesmo, é a que está sendo servida, pronta, embalada, curtível, servil, praticável...
Perto da gente está acontecendo o milagre de alguém tocar viola caipira, bumbo legueiro, berimbau, pífaro de bambu, alfaia, charango boliviano, alaúde, caixa de fósforo, harpa, sanfona pé-de-bode, algum instrumento de algum naipe para solo, duo, banda bacana ou de uma grande orquestra.
Perto da gente tem alguém pesquisando sobre as cirandas, sobre o Lundu, sobre os cantos de trabalho, sobre os folguedos, sobre as serenatas ao luar.
Perto da gente tem alguém chamando a atenção sobre as Políticas Públicas Culturais, que já deveriam estar em consonância com a manutenção das manifestações artísticas da Região, através do reconhecimento de que tais produções existem, pulsam, são dinâmicas e que estas devem estar no centro dos projetos de qualquer governo. E não somente sob a perspectiva de eventos pontuais.
Perto da gente está acontecendo de alguém tecer uma canção que melhor sintonize com sua obra, seja para cantar para outra pessoa, seja para cantar em alguma apresentação na casa, na sala de aula - sobre música -, numa praça, numa roda, no seu grupo social ou em algum evento importante de alguma cidade... por perto, em outro País.
Não nos concederam a oportunidade de olhar com cuidado, para percebermos os milagres das gentes celebrando suas artes em nosso entorno, porque necessitavam que nós consumíssemos o que precisava ser vendido dos seus estoques midiáticos, que cumprisse a ideia de que música deveria ter as características daqueles estoques.
E tínhamos que consumir não somente o produto dos seus estoques. Mas a ideia de que não existem outras produções; a ideia de que não há outras manifestações, outras artes de outras gentes, inclusive das gentes de aqui perto, que estão produzindo arte e bem distantes desses "sucessos" que nos acostumaram a consumir.
Problematizamos ou tentamos problematizar o mercado fonográfico, mas não nos desvinculamos dele para, desnudados, percebermos que existe muito mais música acontecendo, muito mais lugares de expressões artísticas, muito mais gente participando das batas, das pilas, das chulas, das catiras, das congadas, dos candombes, dos calangos, dos cocos, das modas de viola, dos afoxés, das jams, dos rocks, dos desafios de rap, dos improvisos repentes, das frevanças, das violadas, das cantorias, dos eventos musicais voltados aos artistas independentes,das serenatas ao luar.
O fato é que de umas tempos pra cá, chegamos a um ponto em que não ouvimos mais música. Compramos um modelo de música que nos enfiaram goela abaixo. E já nem mais percebemos. Não mais vamos onde vibram as celebrações da música em todas as dimensões.
Vamos onde "tem muita gente" para curtir. Onde tem bastante conversas e gargalhadas mais altas que a música. A fim de esquecermos dos nossos problemas e estarmos ao ponto, para engolirmos o que o mercado disponibilize a seguir.
Não mais nos concedemos o direito de procurar o aboiador para ouvir as notas que falam do seu caminho, sua labuta, sua história, sua ligação com o espaço vivido desde o "pispêi" da manhãzinha até a hora do palheiro de descanso de contemplar o seu lugar e o firmamento.
Não nos presenteamos com os cantos dos povos dos lugares, que passeiam entre a ciranda, a reza com raminhos de afastar maledicências, o samba e o Forró de dançar três dias e três noites, a chegada da bandeira, as demais expressões que resultam das trocas, das construções identitárias.
Citamos a diversidade nas academias e nos congressos de cultura, mas alimentamos a circulação da coisa pronta, vinda de um lugar que nem sempre nos pertence e que muito menos, pertencemos. Pois a diversidade que citamos não cabe o que está acontecendo fora do que nos condicionaram a perceber e citar.
Tem lugar pra todo mundo. Mas com raríssimas exceções, só tem lugar pra todo mundo que seja partícipe da superestrutura ou que seja subserviente a ela.
Tem lugar pra todo mundo que esteja dentro da perspectiva do mercado. Porque tem que estar dentro dos moldes, mesmo que apresentem alguma diferença, tem que ser útil, de modelo mercantil, consumível.
A sorte é que existem artistas, trabalhadoras e trabalhadores da música, que ultrapassaram algumas barreiras e conseguiram nos presentear, com movimentos coletivos ou individuais, com mensagens de fazer quebrar grilhões. Falando-nos que das Esquinas, dos Banquinhos, dos Canaviais, das Estações de Trem, dos Beirais, dos Quintais, dos Terreiros ou das Casinhas de Reboco, a música está mais viva do que nunca.
A sorte é que no meio do caminho, aparece uma turma do cancioneiro popular "polenizando" (tomei por empréstimo essa atribuição que deram ao grande artista Décio Marques, que agora habita nos melhores lugares da nossa memória), levando música de um canto a outro e de outro a mais outro canto, para que percebamos que a cultura está viva pulsando, conectada, gerando mais cultura.
E bem perto de quem esteja suscetível a ouvir e passar adiante, para que outras pessoas também possam entender que existe música fora da caixinha. Perto de quem esteja suscetível a perceber que música está para além do tempo capital, portanto, para além dos etarismos desnecessários.
Existe gente fazendo música antes e depois do lado A e B; antes e depois da televisão; antes e depois da rádio; antes e depois do cinema; antes e depois da playlist dos pen-drives; antes e depois das cortinas; antes e depois dos grandes palcos dos super eventos. Antes e depois do ritmo desenfreado, atropelador e excludente do capital.
Existe e bem pertinho da gente, cantando e dançando em qualquer língua mátria, em qualquer linguagem e gênero, em cores e tessituras diversas. E muitas dessas músicas falam de grandes acontecimentos que fiam os nossos dias, feito amor e saudade; falam de lugares e tempos que nem sabemos mais como são ou como faz pra chegar lá...
Pois carece de querer reabrir os sentidos para perceber isso tudo que está por perto.
Trabalhador da música e da arte-educação.
(Por conselho nobre de uma querida amiga comunicadora, as demais titulações a gente deixa para produções acadêmicas)
Vitória da Conquista, Bahia.
Serra do Periperi, Outono de 2024.
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