“Pode-se dizer que a produção cultural, em todas as suas formas e meios, constitui uma das principais economias do Brasil, que deve ser percebida enquanto tal e aproveitada. O samba do Rio de Janeiro, o Carnaval de Salvador e Recife, a festa de Parintins, na Amazônia, assim como o cinema, o teatro e companhia, constituem economias, cadeias produtivas, de alto valor agregado, elevado dinamismo e grande impacto sobre renda e emprego."
Gilberto Gil
Na ecologia, ecossistema significa o sistema que inclui o conjunto das relações dos seres vivos entre si e/ou destes com o ambiente. Tomando emprestado esse olhar, o ecossistema musical representa a relação entre todos os agentes culturais do setor musical, sejam eles públicos ou privados, e seu público.
Pensando nisso, o Banco do Nordeste Cultural lança o Programa Ecossistema Musical, voltado ao fortalecimento da cadeia produtiva da música, visando desenvolver ações estratégicas para o desenvolvimento e difusão da produção musical, possibilitando a articulação e conexão entre as cenas musicais, bem como o estímulo à criação de redes.
Na ação em questão, buscou-se fortalecer o elo da difusão da produção dos 11 estados pertencentes a área de atuação do Banco do Nordeste, aqui nomeado Nordeste Expandido, formada pelos nove estados do Nordeste, além de Minas Gerais e o Espírito Santo. Foram 27 pesquisadores experientes que trabalharam para apresentar uma leitura desse ecossistema, entregando uma parte do acúmulo de experimentações musicais de suas vidas.
Do xote ao metal, passando pelo samba, reggae, jazz, rap, axé, hip hop, piseiro, funk, e tantos outros estilos, essa coletânea com mais de 100 horas de música em cada plataforma demonstra como a música do nordeste expandido é rica e diversa, para além do “regional”, tantas vezes aplicado para resumir nossa obra.
Vale conferir e aproveitar as playlists de cada estado, seguir os artistas, explorar outras músicas e se aventurar no caminho das descobertas musicais, mergulhando na sonoridade produzida por nossa gente e que merece ser conhecida, apreciada e divulgada.
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Publicado originalmente em BNB.
BAHIA
A Bahia é um verdadeiro berço de ritmos musicais, sendo impossível esgotar aqui a imensidão da sua musicalidade. Desde o princípio, a música sempre fez parte do DNA deste território. Fazia parte dos povos originários e no século 16, junto ao processo colonizatório brasileiro, aportaram na Bahia a música erudita da Europa e os ritmos africanos.
A mistura deste caldeirão se deu a partir do Recôncavo, onde se instalaram os primeiros povoadores da colonização nas festas, eventos religiosos e irmandades. Lá, no século 17, nasceu um dos gêneros mais importantes para o mundo, o samba. Com a marcada influência africana, muitos outros gêneros musicais foram originados na Bahia, a exemplo do ijexá, da chula, do samba-reggae e, mais tarde, o axé, o pagode e o arrocha.
Um território carregado de tecnologias ancestrais, a Bahia esteve também na ponta do desenvolvimento tecnológico agregado à música, onde na década de 1940 foi criada uma guitarra elétrica, a "guitarra baiana". Na década seguinte, surge uma das maiores revoluções dos modos de fazer festas populares, o trio elétrico. Criado por Dodô e Osmar, o carro Ford 1929 com seu potente sistema de som amplificou os movimentos musicais que efervesciam nas ruas.
Ao mesmo tempo, Dorival Caymmi trazia um outro viés de nacionalização da música baiana, relatando como um cronista os hábitos, tradições e anseios desse povo. Sua música nutriu a construção do imaginário cultural a respeito da Bahia. A grande força de sua criação é o tom de simplicidade em uma construção de grande inteligência estética. Influenciado por esta simplicidade, junto à riqueza sonora do jazz, João Gilberto criou a Bossa Nova, que tornou-se um fenômeno mundialmente.
Não podemos deixar de mencionar também um dos mais relevantes movimentos musicais, estéticos, de viés fortemente político e social que foi a Tropicália. Partindo das ideias transgressoras do tropicalismo, a tropicália sacudiu o ambiente da música popular e da cultura brasileira no final dos anos 60. Tinha à frente artistas baianos como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Tom Zé, Capinam, os Novos Baianos, além dos Mutantes, Torquato Neto, Nara Leão e Rogério Duprat. Lançaram em 1968 o álbum icônico "Tropicália ou Panis et Circencis", um manifesto musical do movimento. Ao lado da tropicália, o rock baiano se destacava no cenário nacional com Raul Seixas e sua obra, consolidando uma cena musical sólida que se desenvolveu nas décadas seguintes com outros nomes como Camisa de Vênus e, mais tarde, Pitty.
Outra importante corrente, que transborda os limites da música e, traz a luta antirracista, o empoderamento negro, a exaltação da beleza e da história do povo negro, são os blocos afros com o seu samba-reggae, nascido nos anos 70. A potência da música percussiva dos blocos afros passa a influenciar a musicalidade dos trios elétricos, misturando sonoridades harmônicas e percussivas, nos anos 80. Sua musicalidade foi apropriada pelos empresários dos blocos, que criaram grupos com artistas do seu interesse, dando o protagonismo e monopólio narrativo, midiático, suportados por uma grande estrutura econômica e política. Ritmicamente, a axé music é o encontro da música dos blocos de trio com a música dos blocos afro, o frevo baiano com samba-reggae, um samba-reggae pop/eletrônico. Mas tornou-se um gigante viés da indústria criativa, exportadora e exploradora da musicalidade afro baiana.
Como referências do samba-reggae temos o Olodum, Ilê Aiyê, Muzenza, Timbalada, Banda Reflexus dentre muitos outros. No Axé Music com artistas como Luiz Caldas, Gerônimo, Banda Mel, Cid Guerreiro, Chiclete com Banana, Araketu, Daniela Mercury. Ao mesmo tempo, com um pensamento conectado com a world music, Margareth Menezes defende e difunde o seu trabalho dentro do conceito Afropop. Contemporâneo e ao mesmo tempo referenciado nos elementos ancestrais, com influências que vão da black music norte-americana às guitarras do rock, fundidas com tambores afro-brasileiros, indígenas e latinos, como uma síntese que culmina numa identidade afro-urbana presente não só na Bahia, mas em todo o mundo.
É importante mencionar também o movimento que se deu a partir do disco Cantoria (1978), gravado ao vivo no Teatro Castro Alves. Pois, talvez seja o disco mais impactante para a projeção contemporânea da musicalidade do interior do estado. É a união do erudito com o popular, e influenciou vários movimentos, não só na Bahia. O Grande Encontro nada mais é que uma segunda versão do Cantoria. O próprio termo "cantoria" passou a fazer parte do vocabulário dos cantores regionais. Centenas de cantautores por todo estado passaram a fazer "cantorias" e não mais shows, e vários festivais passaram a reunir esses artistas, como o Cantoria de São Gabriel, que já está na trigésima edição.
Em Cachoeira, também no final da década de 70, o reggae começa a fazer parte da cultura jovem da cidade. Destacam-se Edson Gomes (hoje reconhecido como o maior reggaeman do Brasil), Nengo Vieira e Sine Calmon que influenciaram bandas como Adão Negro e Diamba, que transformaram o estado numa potência do estilo a nível mundial, sendo celebrado anualmente no festival República do Reggae, um dos maiores festivais independentes da Bahia.
Nos anos 1990/2000, a música baiana, fortemente cosmopolita, mais pop, absorveu influências da música latina, jamaicana, da lambada, do reggae, do rock, abrangendo ainda mais as possibilidades de expressões. Junto a isso, nasceram dois importantes gêneros da música popular urbana periférica da Bahia, o pagode e o arrocha (que revelou inúmeros artistas do interior do estado como Nara Costa, Silvano Salles e Pablo).
Em meados dos anos 2000 nasce a Orkestra Rumpilezz, criada pelo maestro Letieres Leite a partir do seu pensamento sobre o Universo Percussivo da Bahia. Trouxe a percussão e ritmos de matriz africana para dentro da música erudita. Uma orquestra de música popular instrumental que incorporou à música ancestral baiana, do candomblé, uma roupagem harmônica moderna e a influência do jazz.
A acessibilidade às tecnologias de produção promoveu a difusão global da música eletrônica, influenciando e renovando as sonoridades da música baiana. Possibilitando a fusão de referências e, apontando para o movimento Afrofuturista, inserindo instrumentos típicos da música pop para criar novas sonoridades, sem rótulos, sem fronteiras.
Como destaque criativo nesse conceito afrofuturista na música temos o BaianaSystem, surgiu em 2009, que trouxe a guitarra-baiana, a psicodelia do rock, da música eletrônica, a guitarrada paraense, a música latina, as percussões do samba-reggae, o dub, o reggae, o arrocha, o forró, a chula, o samba duro, o maracatu, o frevo, o rap. Tudo junto, misturado. Um som extremamente vanguardista, mas resgatando, recriando junto às sonoridades afro-diaspóricas.
Esse modo de criar, impactou e influenciou uma nova geração de artistas, bem como instigou uma nova estética sonora que se desdobrou em outros subgêneros, como o pagotrap, dando suingue a construção linear do trap.
A musicalidade da Bahia nunca deixou de se renovar, se reinventar. Os movimentos contemporâneos que se destacam hoje, nada mais são do que um relicário de referências ancestrais deste porto de diásporas. Um retrato da construção cultural deste território que é solo fértil e farol de um grande legado cultural, provocado pelo circuito de comunicação e encontro das diásporas negras, potencializado pela globalização eletrônica e pela web, coloca em conexão digital, espiritual, ancestral, os repertórios culturais baianos, brasileiros e mundiais.
Raína Biriba
Carol Morena
Gilmar Dantas
Joilson Santos
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Publicado originalmente em 24/03/2023, em BNB.
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