Shau e Os Anéis de Saturno. Foto: Memória Musical do Sudoeste da Bahia
Já faz algum tempo que o “fique em casa” deixou de ser um hino, mas parece que só agora, no segundo semestre de 2022, pudemos experimentar, de fato, o tal “novo normal”, após três/quatro doses de vacina, o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras em locais fechados e a consistente diminuição no número de mortes por COVID-19. Como reflexo, a movimentação em espaços de lazer parece ter aumentado substancialmente. Em grande escala, em Vitória da Conquista, tivemos, como primeiro exemplo, um lotado Festival de Inverno, refletindo uma vontade coletiva de ter de volta sua liberdade de ir, vir e se divertir sem a paranoia de 2020 que, não tenhamos dúvida, nos afetou psicologicamente como nunca antes, mesmo de forma não tão claramente perceptível. Agora, entre 15 e 18 de setembro, tivemos o segundo grande exemplo, o Conquista Moto Rock, festival temático e gratuito anual voltado ao universo motociclista, com o pop-rock como gênero musical dominante (abandonado há tempos pelo Festival de Inverno), sagrando-se como o maior evento musical aberto da região sudoeste.
A mudança de local, do Centro Cultural Glauber Rocha (zona oeste) para a área externa do Boulevard Shopping (zona leste) dividiu opiniões, mas confirmou as justificativas da organização: o acesso é realmente mais fluído, sem engarrafamentos e transtornos aos visitantes e moradores: a Avenida Olívia Flores funcionou muito bem e não há residências tão próximas ao local, eliminando, inclusive, problemas com excesso de ruído, do palco ou das motos. O trecho também possui pontos de ônibus próximos (ida e vinda) e os inúmeros táxis e carros de aplicativos parados à saída não chegaram a prejudicar o tráfego. O shopping funcionou como um importante “anexo”, possibilitando o acesso a mais opções de alimentação e consumo em geral. O grande estacionamento para automóveis ofereceu mais tranquilidade aos motoristas e, ainda sobre a estrutura do Boulevard, reconheçamos: nunca um evento de rock em Conquista teve banheiros tão limpos e confortáveis em toda a história da nossa cena!
Ao todo foram 17 atrações musicais, sendo 15 bandas, 1 DJ (que se apresentou no sábado e domingo) e 1 grupo acústico, que se apresentou no espaço do lounge. A banda que abriu o evento foi a mais longeva da cena conquistense: a Excalibur Rock Band, ativa desde o início dos anos 90, trouxe seu já conhecido repertório, misturando clássicos nacionais e internacionais, seguida pela Bernardino Band e a 4bITs Rock, na mesma linha, porém, focando-se mais no nicho internacional. O segundo dia contou com a Beth Soul, liderada pela cantora Bete Pires, atuante na cena desde o início dos anos 2000, abrindo a noite. Em sequência, o som oitentista da Flash 80, com três vocalistas que se revezavam, lembrando o formato consagrado por bandas como o Roupa Nova. Shau e Os Anéis de Saturno, banda jequieense de altíssima qualidade, trouxe a sensação de termos, no palco, uma atração que poderia muito bem estar no palco principal do Festival de Inverno, dada a qualidade dos músicos, do cantor e das execuções, incluindo canções autorais. Fechando a noite, o blues da Aquarius Blues Band, alterando a bússola dos “repertórios de clássicos”, trazendo os clássicos do ritmo nascido no Mississippi, “pai” legítimo do rock.
O sábado foi de interessantes experiências musicais. Ao fim da tarde, no lounge, Bergeron & Malfs reuniram uma pequena multidão em torno de si, em formato “vozes-guitarras-e-cajón”, tocando rock, country e blues, em uma jam session contando com a participação de Weldon França (gaita, guitarra e voz), da antiga banda Zé dos Cafés, e Nephtali Bitencourt (Distintivo Blue) ao cajón, sugerindo ser viável, para as próximas edições, a implantação de “palcos alternativos”, mais intimistas. À noite, Os Raulzísticos (Jequié) trouxeram a proposta de homenagear o rei do rock brasileiro sem a necessidade de copiar seu visual ou trejeitos: trata-se de um show de uma banda formada por amantes da música de Raul Seixas, e os vocalistas são todos os presentes, sobre ou defronte ao palco. Apenas isso, diferente, por exemplo, do proposto pelo riocontense Ely Pinto, bastante conhecido por aqui.
Em contrapartida, a proposta do Appetite for Illusion (Salvador) foi trazer um espetáculo imersivo à obra do Guns n’ Roses, com timbres (de voz e guitarra, principalmente) fiéis aos originais, incluindo, até mesmo, músicas do AC/DC (em referência à recente passagem de Axl Rose pela banda) e alguns “corpos estranhos”, como músicas do Pink Floyd e Steppenwolf, como um exercício de criatividade: “como seria o Guns tocando isso?”. Surpreendentemente, o vocalista Fábio César deu conta dos tão esperados (e perigosos para a carreira de cantor, como o próprio Axl nos mostra há algum tempo) agudos rasgados, arrancando aplausos. Fechando a noite, a Essencial Hit e a Tiamat & Os Garotos Perdidos retomam a “salada de clássicos” avançando à madrugada.
O Lomantão serviu de área de camping. Foto: Memória Musical do Sudoeste da Bahia
No domingo, último dia, as atividades começaram mais cedo, o que significou uma presença de público menor durante a apresentação do Elas Cantam, grupo formado por conhecidas cantoras da cidade. O cansaço já era palpável aos que compareceram em todos os dias anteriores, incluindo os próprios músicos: Kessller, vocalista da banda Hey Brother, intensamente rouco, fez uma verdadeira demonstração de “dar o sangue” pela música, demonstrando um esforço sobrenatural para manter-se afinado e fornecer uma grande apresentação ao público, e conseguiu, com louvor. “Fazemos o que amamos!”, disse o músico, por mais de uma vez. A Tombstone enfrentou diversos problemas no palco, relacionados também com rouquidão e com a afinação de uma das guitarras. Ao final, convidou Raul Vilas Boas, vocalista da Retilínea (banda seguinte), para cantar Roadhouse Blues, do Doors. A rouquidão intensa do cantor quando da apresentação da sua banda nos faz pensar em como é penoso ser cantor e se apresentar ao último dia de um festival como o CMR, devendo-se escolher entre se preservar para a própria apresentação ou curtir os dias anteriores, como parte do público. Apesar do calor intenso durante o dia, devemos lembrar que Vitória da Conquista ainda é a "Suíça Baiana", e o forte “vento frio que vem da UESB” saudou a todos com veemência, em todas as noites. As farmácias agradeceram, certamente.
Não pudemos deixar de prestar atenção em um aspecto interessante desse que já é o maior evento de rock da região: a faixa etária dos roqueiros mudou substancialmente, em relação aos movimentos iniciados em 2000: hoje o rock conquistense tem mais de 30 anos, incluindo o público e os músicos. Não houve a apresentação de nenhuma banda formada por garotos em idade escolar, como era predominante durante a década de 2000, quando a cena rock conquistense foi mais intensa, e na década de 2010. Dentre o público formado por motociclistas, a idade média também parece seguir o mesmo modelo. A impressão que tivemos foi a de que poucos grupos de jovens compareceram espontaneamente, sem terem sido trazidos pelos pais roqueiros. Isso se comprova pela natureza dos repertórios, formados, essencialmente por “clássicos” do século passado, cantados a plenos pulmões em uma gigantesca celebração nostálgica. O rock realmente virou coisa de velho? Onde estão as bandas jovens, incapazes de subir ao palco com as legítimas (e caríssimas) Fender ou Gibson que desfilam no cenário atual? Nesse sentido, devemos aplaudir iniciativas como as da Tombstone e Aquarius Blues Band, que ousaram apresentar repertórios que fugiram do óbvio, com rocks e blues para iniciados, e não apenas os previsíveis (apesar de muito legais) “lado A”. Não foram poucas as vezes em que percebemos uma música ser tocada por uma banda, e repetida pela seguinte.
Avançando, devemos aplaudir ainda mais as iniciativas de bandas como Shau e os Anéis de Saturno e Retilínea, que levaram suas canções autorais ao palco, para nos mostrar que o rock ainda é vivo, e que “ainda pulsa”, em referência à canção dos Titãs. Não pudemos deixar de pensar em como seria bem mais interessante, em vez de escutarmos Sweet Child O’ Mine, Sultans of Swing e Take on Me repetidas vezes, pudéssemos escutar, em lugar das repetições, algumas canções autorais de cada banda. A nostalgia acalenta, mas nunca devemos nos esquecer que estamos no tempo presente. Fica a provocação para as bandas das próximas edições. O rock sempre foi (e deverá ser) sinônimo de (pelo menos algum nível de) ousadia e personalidade.
Na praça de alimentação, o melhor da culinária local, com nomes conhecidos e uma boa diversidade de opções. Certamente a experiência de quatro dias rendeu bons lucros e contatos, muito bem-vindos em tempos tão difíceis a todos os empreendedores. Às margens do evento, atrás dos estandes de motoclubes, ainda havia a presença de food trucks de todos os tipos, para os que preferiram lanches mais presentes no cotidiano da cidade, como os tradicionais hot dogs. O evento ainda contou com brinquedos infláveis para a criançada. Um verdadeiro mar de motocicletas pôde ser contemplado à área do estacionamento, que foi gratuito para motos e trailers.
No interior do Boulevard, diversas menções ao festival. Foto: Memória Musical do Sudoeste da Bahia.
A impressão que tivemos é a de que a meta de público estimada pela organização (cerca de 40 mil pessoas) foi facilmente superada, demonstrando que o CMR já se tornou gigante e que o espaço deve ser ampliado mais uma vez para a próxima edição. O evento já é capaz de competir com o FIB em público e engajamento (embora não haja realmente uma relação de “competição” entre os dois festivais) e já pede, como dissemos, novos elementos, como palcos alternativos menores e mais amplos corredores para a circulação. A ideia de trazer apenas bandas da Bahia foi admirável, demonstrando e valorizando a força da nossa música. Segundo os organizadores, foram mais de 70 músicos presentes, trabalhando e sendo remunerados. A pandemia iniciada em 2020 revelou (escancarou) tanto a fragilidade do setor em tempos de crise quanto a importância de um evento como este para a economia local. Sentimos falta dos típicos e “lendários” biscoitos de Conquista, um dos grandes símbolos da cidade, com o devido destaque, sobretudo considerando a presença de motociclistas de todas as regiões do país. Nesse sentido, consideramos fundamental a atuação mais enfática da Prefeitura Municipal, correalizadora do evento, em trazer, de forma inteligente e incentivadora, elementos como este, de forte potencial turístico, para as próximas edições. Felizmente temos a inclusão do festival ao Calendário Oficial do Município, significando a tranquilidade de saber que podemos contar com o CMR sempre à terceira semana de setembro, ano a ano. Aplaudamos, mais uma vez!
A zine oficial do CMR. Foto: Memória Musical do Sudoeste da Bahia.
Finalizando, mencionemos mais um pioneirismo do CMR, primeiro evento conquistense a lançar sua própria zine oficial (na verdade, não temos, até o momento, notícias de qualquer outro evento no Brasil a fazê-lo), importante elemento cultural intimamente atrelado ao rock independente, criado na década de 1940 e popularizado na década de 1970 como uma forma de expressão escrita, impressa e geralmente gratuita. Produzida pelo projeto Memória Musical do Sudoeste da Bahia, traz informações sobre rock, motociclismo, o próprio festival e as atrações deste ano. A tiragem foi de 2.000 cópias, com impressão colorida (o que, em si, já é espetacular, para um fanzine em pleno 2022), distribuídas gratuitamente ao público durante o evento. Se você conseguiu a sua, tem, em mãos, um item histórico. Guarde com carinho.
A cultura motociclista já fincou raízes em Vitória da Conquista. O Conquista Moto Rock 2022 foi um grande e importante evento, com um enorme potencial de crescimento. A união de forças entre a iniciativa privada e o Poder Público mostra-se profundamente eficaz, beneficiando a todos. A população teve quatro dias de intensa imersão ao universo das duas rodas e à boa música. Os motociclistas firmaram parcerias e amizades, conheceram as belezas da capital do sudoeste baiano e já têm, em Conquista, um porto mais que seguro. Os expositores e profissionais da gastronomia se fizeram apreciar pelo público, firmando novos contatos e perspectivas. Os músicos subiram ao palco, demonstrando, a um verdadeiro “mar de gente”, grandes trabalhos, provando que nem só de axé vive a Bahia. A cultura, o lazer, a economia e o turismo celebram juntos. Aguardemos, ansiosamente, o Conquista Moto Rock 2023.
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Publicado originalmente em Memória Musical do Sudoeste da Bahia. Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
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