Foto: Nem Tosco Todo |
A história do rock conquistense nunca foi levada muito a sério, salvo em raríssimos momentos, isto é fato. Esse descaso parte de todos os lados: público, contratantes, pesquisadores e, por incrível que pareça, os próprios artistas, que, de uma maneira geral, não costumam se preocupar com profissionalismo ou mesmo com a importância cultural que carregam. Assim, muitas boas histórias simplesmente se perdem porque ninguém se preocupou em preservá-las. As exceções são raras.
Falando em raridade e exceções, em Conquista há esses casos. Um dos principais é o da banda punk Cama de Jornal. Totalmente underground, desde 2001 faz milagres que nem os adoradíssimos sertanejos conseguem: além de conquistar um público cativo, que canta o repertório do início ao fim do show, a banda conseguiu fazer turnês importantes e dividir o palco com ícones do gênero no Brasil, tendo o Cólera (SP) como exemplo mais óbvio. Foram seis álbuns (incluindo os ao vivo), DVDs, coletâneas, eventos e toda uma rede interligada para provar que o conceito de sucesso nunca esteve necessariamente ligado às referências comuns sobre a palavra.
À frente de tudo isso está o inquieto Emanuel Paulo Moraes Santos ou, simplesmente Nem, apelido que usa desde criança. Figura sempre presente no rock local, é um legítimo adepto do modo punk de viver, sem dar muita bola para um dos artigos mais caros à sociedade conquistense: as aparências. Nem não se preocupa em parecer com nada: ele apenas é o que é. E assim, segue compondo suas canções, sempre carregadas de mensagens sinceras e registrando-as para a posteridade, inevitavelmente, escrevendo uma bela parte da nossa história.
Seu mais recente projeto está pronto e à disposição: sua autobiografia Vagando Por Aí, produção independente, como deveria ser, fruto da máxima faça você mesmo (do it yourself - DIY, em inglês), que direcionou toda a sua obra. O livro, com 351 páginas foi escrito, principalmente, em homenagem à sua filha, Alice. Segundo o autor, para que ela soubesse, no futuro, quem realmente foi seu pai, por suas próprias palavras. O título remete à faixa homônima da Cama de Jornal, lançada em seu segundo álbum de estúdio, Comendo Lixo (2004). Por sinal, essa música não me saiu da cabeça um segundo enquanto viajava por suas páginas.
Seguindo a estilística já reconhecida por todos os fãs, a capa conta com uma foto típica do Nem vocalista: parado à frente do microfone, com uma latinha na mão, uma touca (ou um boné, na maioria das vezes), levantando as mãos num daqueles momentos em que pede a parceria do público em alguma letra. O título, com o letreiro aparecendo atrás de um rasgo na página, como se estivesse na folha de rosto, é o padrão que Nem imprimiu também em sua discografia solo. Quem já se familiarizou, reconheceria em qualquer lugar. O selo Tosco Todo, o selo de divulgação criado por ele, claro que não deixaria de se fazer presente.
Nem se preocupou em situar o leitor na narrativa: muitas vezes, ao citar um lugar, uma época, trata de explicar rapidamente esse contexto, o que torna o livro uma valiosa peça no grande quebra-cabeças da história cultural local. Através dele, conhecemos um pouco sobre a cena rock a partir do final dos anos 80 até sua época mais ativa, pós 2000, onde a Cama de Jornal conquistou seu lugar. É muito interessante ler uma autobiografia de um roqueiro onde o cenário é nossa cidade: geralmente se lê sobre lugares distantes e sem muita referência. Aqui, a maioria dos lugares e pessoas surgiam de forma clara na mente, e assim percebe-se a importância desta obra.
Da infância regada a manga à adolescência rebelde e cheia de descobertas, temos aquela etapa tão comum a biografias do rock, com drogas e o álcool, que persegue até hoje o autor. As histórias das turnês por todo o país são inspiradoras e mostram bem o espírito colaborativo do rock n' roll. Sempre bom se lembrar, durante a leitura, que tudo isso é conquistado no underground, sem apoio de imprensa, gravadora ou grandes empresas. O DIY funciona, mas é movido a boa vontade.
Estive presente em vários acontecimentos descritos no livro, como o histórico show no Point do Rock da micareta, em 2004. Eu lembro bem de qual ponto da praça da Guadalajara eu estava quando Nem anunciou: "Galera, é o seguinte: tem dois abadás aqui pra ser rasgado!". Acho que foi o meu primeiro show da Cama de Jornal e me diverti MUITO com o jeitão de Nem. Eu nem soube que esse episódio tivera alguma (má) repercussão à época, mas gostei do que vi, afinal, considerava as músicas pornográficas da axé music um câncer na sociedade, e que nosso espaço ali no cantinho, que já era marginalizado, não seria lugar para mais daquilo. Esse show me marcou como poucos.
Se tenho uma crítica negativa sobre o livro é sobre a total ausência da Casa do Rock, importante espaço que tinha Nem como sócio. Lá muita coisa importante aconteceu: para mim era o legítimo sucessor do Paraki, o lendário bar de rock onde se encontravam todos os alternativos da cidade. A Casa do Rock, pelo simples fato de ser voltado ao ROCK e ter uma vizinhança abastada em plena avenida Rosa Cruz, já era um sinal claro de que não duraria muito tempo. Claro que os "espertíssimos" roqueiros que usavam os muros da vizinhança como mictório e depósito de lixo (estes merecerão um texto à parte, pois não foi só ali que "queimaram o nosso filme") colaboraram muito para o fim precoce do espaço. Enfim, não sei se causaria algum desconforto por algum motivo interno, mas acho que ela mereceria um capítulo inteiro na obra sim. A Casa do Rock ocupa um espaço especial na memória de muitos.
O livro está à venda, atualmente, no Ponto do Disco (de Dalmo Sérgio, vocalista da banda Atestado de Pobreza, bastante citado no livro), em frente ao antigo Cine Madrigal. Nº 126, sala 106. Você também pode comprá-lo diretamente com Nem. Custa apenas R$40,00 (R$50,00 se for preciso envio pelo Correio).
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Atualização (03/01/2020):
Em seu perfil no Facebook, Nem publicou o seguinte texto, sobre este post:
Novo site sobre a cena musical de Conquista, produzido por Plácido Mendes, que publicou uma resenha sobre o meu livro "Vagando por aí". Muito boa a resenha, e o site tá muito bonito. Obrigado pelo apoio na divulgação do livro. E já respondendo um questionamento na matéria, sobre a falta de um capítulo sobre a Casa do Rock, um bar que montei em sociedade com Niel Costa e Fábio Novais; pra mim foi uma experiência "traumática", que me deu dor de cabeça e prejuizo por vários anos depois do fechamento da casa em 2014 (até o começo de 2019 eu ainda pagava dívidas de banco que fiz pra abrir o bar). E dessa experiência, não consegui tirar nenhuma história interessante, apesar de a casa ter tido muitos shows legais, mas pra mim o que ficou foi isso, e acho muito pouco pra entrar no livro. É tipo um capítulo que eu quero esquecer, e esqueci propositalmente no livro! Mas sei que vários frequentadores terão suas próprias histórias da Casa do Rock! Ontem mesmo eu estava lá no Buteco de Vitão, na feira, com Chico Ribeiro e a gente falava sobre isso. Leiam a resenha e o livro!
Atualização (21/02/2022):
Em resposta ao mesmo post, Fábio Novais também expõe suas impressões:
Para mim o projeto Casa do Rock também foi um duro golpe, além de trabalhar exaustivamente, tomei um prejuízo de mais de 15 mil reais. Por muito tempo fiz de tudo para esquecer, mas depois de muito tempo tenho apreendido a filtrar as lembranças e pensar apenas nas amizades que ali conquistei.
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